Pinco Palino estuda 6 anos para se tornar Médico, depois faz outros 4, 5 ou 6 de especialização e residência.
Na faculdade, enquanto estudante e durante toda a sua formação, lhe disseram que a anamnese e um bom exame físico eram elementos essenciais para o diagnóstico e consequentemente para a correta terapêutica e que o foco de seu trabalho é o paciente. É para o melhor interesse do paciente que ele deve trabalhar e usar sua argúcia, perspicácia e entendimento e seu arsenal acadêmico.
E ele até jurou que seria assim. Um juramento antigo *, coisa de deuses e deusas desconhecidas, mas cuja parte do doente entendeu perfeitamente e lhe soou justa e familiar. Fazia parte do ritual.
Por um período de tempo, até Pinco Palino acreditou que de fato o objetivo de sua arte seria o seu doente. Até que lhe foi apresentado "o convênio"**.
O "convênio", mostro oriundo de um sistema de saúde incapaz de suprir as necessidades do cidadão, apareceu de início com uma carinha de bom moço, de solução, onde o Estado se fazia omisso ou insatisfatório, e parecia até interessante no início. Mas devagar, talvez nem tanto, o monstro cresceu, fermentou.
E Pinco Palino que antes decidia qual seria a melhor opção para o seu doente, agora não decide mais. Decide o "convênio".
O "convênio" diz quando e como o doente será tratado, em que regime, com qual critério (mesmo absurdo).
Existe em curso uma batalha sobre o ato médico, onde o diagnóstico e a terapêutica seriam prerrogativas médicas.
Mas o "convênio" não é um médico. Na verdade é uma figura empresarial administrativa, cuja finalidade última não é o bem estar (leia-se saúde) do conveniado (leia-se doente), objetivo da Medicina, mas sim a estabilidade econômica do sistema "convênio", as contas.
No tal juramento onde Pinco Palino solenemente tornou-se um médico, não existe a frase "protegerei a saúde do convênio". Pinco Palino não responde mais ao texto original. Agora é um empregado dos interesses administrativos do "convênio", não um profissional a serviço dos interesses do doente.
Pinco Palino é um profissional infeliz. Mal pago, impedido de realizar na amplitude sua função profissional, quase arrisco dizer que tem "metas" a cumprir. O doente de Pinco Palino, também é infeliz, pois com a mudança do foco de interesse de quem deveria tê-lo como a razão de seu trabalho, sente-se abandonado, mal curado, desumanizado. E o sistema, uma vez burocratizado, emperra quando as indicações médicas não são compatíveis com os interesses empresariais e administrativos do "convênio", perdendo tempo, dinheiro e paciência dos atores envolvidos.
Tenho assistido com amargura ao longo dos anos uma mudança do que chamamos "serviços médicos". Encontro tantos bons técnicos leitores de exames, mas realmente poucos espertos em semiologia. Talvez seja uma coisa antiga, esta semiologia, talvez tanto quanto o tal juramento.
Que Deus abençoe de fato todos os médicos que se mantém fieis ao seu juramento e à sua arte. São estes os que fazem a diferença.
NA:
*"Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higéia e Panacéia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça."
** convênio, plano, cooperativa e toda a sinonímia que se aplique neste caso e que a carapuça sirva.
2 comentários:
Excelente!
Uau! Sandra, está inspirada!! Outro texto maravilhoso! E verdadeiro, infelizmente....
beijo
Postar um comentário